domingo, 15 novembro, 2015

Se eu tenho um diário? mas que pergunta foi essa? 436… qual era mesmo o número… nunca lembro o número.. um chinês?! mas o que a porra do chinês está fazendo? não sei se aguento mais disso…preciso me livrar desse maldito hábito, mas eu gosto do gosto do vermelho… não sou bom em me livrar… Um chinês? mas que diabos! estão por toda a parte agora, falando entre os dentes e parecendo estranhos da primeira vez… fora do espaço, do esquadro… perfume… maldito perfume. perfume bom, bancos de couro… que papo foi aquele de diário? asas, ás vezes asas, ás vezes um céu inteiro, só de sacanagem… acostuma, com quase tudo se acostuma… com a dor, a falta de ar… com a clemência… dá pra ir mais rápido e essa coisa voa no asfalto… dá vontade de rir até… está aberta a temporada de caça aos coelhos… coelhos roxos, vermelhos e azuis, todos mortos pendurados nas cercas brancas e bem comportadas… onde é proibido abrir bem as pernas e mostrar aos estranhos … coelhos filhos da puta… não sabem se comportar e acabam todos no  mesmo ponto… bem em frente e ao lado… coelhos maus, coelhos bons, pouco me importa… pouco me importa o proibido.


Suffragette City

quinta-feira, 6 novembro, 2014

Suffragette City. O letreiro acendia e apagava. Tinha também, na parte de cima, um perfil de mulher com um cigarro. A fumaça era rosa. A mulher era verde amarelado. Sempre gostei de ficar olhando esses luminosos. Quando fiz oito anos, meu tio me deu um pequeno abajur de neon. Ele não acedia e apagava, como as luzes que eu via na rua. Então eu ligava e desligava o interruptor pra fazer o efeito. Quando fui para o orfanato, com nove, me confiscaram o abajur. Disseram que devolveriam quando eu saísse. Eu não saí antes dos dezenove. Não fui adotado. Fui enviado pra uma escola para crianças, jovens no caso, que não tem família. Do que eu posso chamar de família, só conheci o meu tio e ele morreu indo comprar pão. Levou dois tiros – foi o que disseram. Nunca mais vi o abajur. Estava pensando nisso, me preparando pra acender um cigarro quando uma negra com um corpo grande e forte saiu pela porta lateral e encostou na parede um pouco a frente da onde eu estava e acendeu um cigarro pequeno. Achei que era um baseado, mas não tinha cheiro de erva. Ela deu uma série de cinco tragadas bem fortes, daquela que fazem a cabeça girar e as pernas amolecerem e jogou a bituca longe com os dois dedos da mão direita. Depois jogou a cabeça pra traz e deu uma risadinha sacana e entrou pela mesma porta que tinha saído. Fiquei olhando pela calçada onde poderia ter caído o cigarro. Depois de um tempo notei que ele estava entre o poste e a lata de lixo. Ela quase tinha acertado o alvo. Peguei a vassoura e pá e juntei a bituca e coloquei no carrinho. A rua era longa, a noite era longa e praticamente todas as boates, em qualquer dos lados da rua, subindo ou descendo, tem letreiros de neon coloridos e negras corpulentas que fumam cigarros depois de um programa.


terça-feira, 29 outubro, 2013

 

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Caminhamos até a ponte através da noite quente e úmida.  Ele tirou a carteira de cigarros do bolso da jaqueta preta de couro e um isqueiro do bolso da frente do jeans apertado. Olhei para o seu rosto duro através da chama do gás queimando e me senti confiante. Tudo nele estava perfeito. Tudo nele passava uma segurança incrível. Nada parecia estar fora do lugar. Aos poucos os olhos iam se ajustando e as sombras tomando a forma de pessoas, como se antes fossem pedaços da ponte ou apenas o vazio. A alguns metros, três ou quatro pessoas fumavam um cachimbo e a erva tinha um cheiro forte e doce. Ele fumou o cigarro inteiro e então amassou o filtro com o tênis branco de cano alto. Quando eu pensei que ele ia dizer alguma coisa, levantou a gola do casaco, colocou as mãos nos bolsos de trás da calça e se encostou meio torto na parede.  Perfeito, pensei. Comecei a suar frio na mão. Isso sempre acontece quando fico ansioso. Pedi um dos cigarros dele e ele me estendeu o maço e depois de um pequeno estalo o isqueiro produziu a sua luz bem na minha frente. Pensei em quantas vezes ele fez aquele mesmo gesto e quantas mais faria ao longo da sua vida. Imaginei o gesto envelhecendo, talvez perdendo um pouco do maneirismo, da velocidade certa, da precisão em que a chama fica da ponta do cigarro. Então em meio ao silêncio pensei na sua voz, nas coisas que ouvi dizendo, lento e preciso, sobre tudo que cerca e que prende e que solta em seu mundo. Senti um frio cortante subindo pelas minhas costas e girei sobre os calcanhares. Fiquei assim, com ele atrás de mim e na frente um emaranhado de luzes, umas vivas como o sangue sob a pele, outras inertes, frias, pálidas, que pareciam estar esperando, como nós dois nesse exato momento, que todas as aflições fossem empurradas goela abaixo.


domingo, 27 outubro, 2013

Tava pendurando as roupas do meu filho. Por acaso olhei as etiquetas. Uma parte delas é fabricada na China, outra no Camboja. As do Brasil devem ter sido feitas pelos bolivianos. Com certeza foram. É a globalização. Os governos comemoram o investimento e o superávit primário que vem atrelado com a bola de chumbo amarrada no tornozelo de cada pessoa que trabalha 20 horas por dia, todos os dias. Sábados e domingos? Só mais dois dias de trabalho, nada mais. Os chinas são os mais fodas. Praticamente tudo é feito lá, desde pinto de borracha até as pilhas pra ligar o brinquedinho. Ouvi que os chinas comem grilo, rato, cachorro, tudo que se mexe de alguma maneira. Os chinas estão indo bem rumo aos dois bilhões de olhinhos puxados. Acho que se somassem os chinas que não moram na China, já daria isso. Na rua aqui ao lado deve ter uns cinquenta deles. Você vai dizer que estou exagerando. É que na verdade a gente não nota porque tem a ideia errada que eles são todos iguais. Eles não são. Eu achava que eram, mas percebi que não. Cada vez que abre a porta do mercadinho – aqui todos os mercadinhos são dos chinas- saí uma criança diferente. Eles se reproduzem numa velocidade estonteante. Devem ser depois dos coelhos, os mais rápidos. To relendo um livro no qual o pai do Henry Chinaski diz para ele que – na época Henry é moleque ainda – os chinas são amarelos porque tomam mijo. Tem uma porrada de gente que toma mijo. Uns sabem e fazem dessa bizarrice o seu fetiche. Outros não sabem e continuam comprando aquela marca de leite, aquele suco famoso que emagrece. Tudo é o mesmo mijo, só vem de fontes diferentes. Então não tem nada demais em tomar mijo. O que tem demais é que os chinas formam a maior nação de escravos sobre a terra. Ninguém ganha deles. Por uma miséria você monta uma fábrica e faz o que bem entender por lá e vende a merda todo com um lucro de mais ou menos 500%. Os chinas precisam de trabalho. Os grilos e sapos devem estar sumindo por lá. Dia desses vi uma foto de uma cidade chinesa. Como Nova Déli, a cidade não tinha horizonte. O que se via era uma névoa que cobre tudo a cem metros de distância. É poluição o que se vê, se respira. Você toma banho, trepa, come, troca o pneu embaixo daquela merda toda de poluição. Dizem que vão arrumar, mas por enquanto custa muito caro e a China, a Índia e os brics todos têm de crescer, então que se fodam os pulmões, os paus e bucetas, as criancinhas de olhos puxados ou não, que se fodam. Enquanto houver arroz, há esperança. Que venha o progresso, com aquela fumaça pegajosa e nojenta, com o câncer aos 3 anos de idade. Que venha alegre e retumbante o progresso ganancioso que faz com que o mundo precise, se reproduza e aumente e precise e se desespere com a falta do não precisa e nunca vai ter. Que venha. Tenho um pouco de pena dos chinas, mas acho que se eles comprassem o arsenal que os americanos estão vendendo a gente tava fodido.


Era uma vez no oeste

quinta-feira, 24 outubro, 2013

Mas que diabos você está fazendo, homem? O quê? Ah, isso? Chama-se tirar a sorte com o diabo. Você tira as cinco balas e deixa só uma e gira bem forte o tambor. Daí, quando ele para de girar, você aponta bem no meio da cabeça e aperta o gat… um estampido que me deixou surdo na hora e os miolos de Sam Pack se espalhando pela cabine toda é a última coisa que lembro antes de espatifar a camionete num cacto idiota. Cambaleei pra fora e me estirei no chão. Céu estrelado, uma coisa linda de se ver na escuridão. Setembro é um grande mês pra ver meteoros. Tudo arruinado: a camionete, a cabeça de Sam, meu ouvido direito e aquele cacto que deveria estar ali a bons uns duzentos anos. Tudo arruinado. Peguei a sacola com o dinheiro e comecei a andar em direção ao norte. Li em algum lugar que é a coisa certa a se fazer quando você não sabe o que fazer e tem uma sacola cheia de grana que não é sua. Desgraçado do Sam. Tinha de estragar tudo. Pelo menos não tenho de dividir nem um centavo. Um dia, quem sabe, alguém passe pela estrada e ache aquele idiota sem cabeça. Nunca teve cabeça mesmo. Pela manhã os urubus vão fazer a festa. Pensar nisso me deu um pouco de tristeza. Pensar que poderia ser meu corpo, rasgado e devorado pelos urubus… não sei, isso deixa qualquer um bem triste. Linda Jay. Que espécie de mulher tem um nome desses, Linda Jay? Foi tudo culpa dessa vadia. Se Sam não tivesse obcecado com essa puta… Linda Jay. Um belo traseiro, belas pernas. A piranha tem uma boca que faz um pau sair cheio de voltinhas, que nem aquelas pernas de mesa antigas. Linda Jay. Pensando bem, não seria nada mal ter Linda Jay por perto por um tempo. Acho que o norte pode esperar.


Sobre amanhã, aquela letra de música

terça-feira, 1 outubro, 2013

Donald, como o pato, pensou. Nunca entendeu por que merda tinha este nome. Olhava para as revistas e jornais na banca sem o menor interesse nas notícias requentadas de sempre. Comprou dois maços dos vermelhos e um isqueiro – essas coisinhas que fabricam hoje vem com a metade da carga e sempre te deixam na mão. Chineses de merda. Pensou em falar alguma coisa com o jornaleiro, mas desistiu. A rua sempre cheia de maltrapilhos. Ele próprio um, tentando desfazer o nó do mal estar que o almoço de boteco sempre fazia no seu estomago. Tinha o estomago fraco, falou um médico. Nunca mais voltou na porra do médico. Como acreditar num careca? O cara nem cabelo tinha e vinha cagar regra com o estomago dos outros. Espelho, meu amigo. Pensou que tinha que começar a organizar a mudança. Ia morar com Dóris. Ela estava empolgada e ligava pelo menos três vezes em cada hora querendo saber a opinião dele pra tudo que ela achava importante. O que ia fazer com a coleção de gibis? E os filmes? Quando pensava na coisa toda, não via vantagem nenhuma em ir morar com Dóris. Nesse meio tempo ela ligou e disse que o apartamento dele – quitinete, ele corrigiu Dóris, tava uma zona e uma imundice. Que ela não encontrava a conta de luz pra dar como comprovante pra alguma coisa que era importante. Não tinha a mínima ideia da onde estava o papel que Dóris queria, mas sabia onde estava o livro com as quinhentas coisas a se fazer antes de morrer, ou alguma coisa do gênero. Riu disso, da morte. Pra morrer tem que viver primeiro. Uns dizem que a gente está morto e daí nasce de novo e de novo… pura burrice, pensou. Se ele estivesse morto ia ficar como estava, mortinho e quietinho no seu lugar. Pra que nascer? Pra comer essa merda de almoço? Trabalhar nesse emprego que nunca vai dar em nada? Pra ir morar com Dóris? Foi ideia dela. Ele achava que estava bem onde estava, mas Dóris… bom, ela era um furacão e quando achava que alguma coisa tava fora de lugar, lá ia Dóris tentar colocar as coisas no eixo. Conheceu Dóris num puterinho que fica aberto sempre, sem nunca fechar. Foi por causa da batata frita.  Depois de uma noite vagando pela rua e bebendo com uns amigos sem rumo, achou que devia comer alguma coisa – o estômago, pensou. Entrou no bar e ficou olhando como as garotas sugam o sangue e a grana dos velhos idiotas e brochas, que se dizem durões e viram garrafas e mais garrafas de uísque paraguaio, com as putas a tiracolo, rindo sei lá do que, mas sempre rindo com toda aquela falta de dentes. Pediu batata frita e sentou no canto do balcão e ficou ali, olhando pro tampo surrado com umas merdas escritas. Foi quando a batata chegou que notou Dóris. Ela disse alguma coisa sobre a batata estar nadando ou se afogando em óleo ou alguma coisa parecida. Ele colocou sal e empurrou o prato pra perto de Dóris com um “pode pegar quantas quiser, dona”. Alguma coisa aconteceu ali, mas ele não se lembra, não por estar bêbado, pois nunca ficava bêbado, tinha desenvolvido o hábito de tomar uma garrafinha de água entre um copo e outro, só que não estava mesmo interessado no que aquela mulher falava, só isso. Depois desse dia, ela apareceu no apartamento dele com umas coisas que comprou no supermercado e fez comida no fogão portátil de duas bocas, praguejou como uma louca e se escandalizou por ele não ter uma geladeira descente. Mas o que é descente nesta vida? Pensou nisso enquanto tomava uma dose da garrafa de Smirnoff que estava em cima da televisão 29 polegadas. Tem sempre alguém tentando te salvar desta merda, mas ninguém pergunta se você quer mesmo sair do purgatório. Donald… por que este maldito nome de pato? O seu pai só poderia estar de sacanagem quando registrou o nome. Agora tinha de carregar, além do nome, as gozações que vinham com ele e agora Dóris.  Sentou num dos bancos atrás da livraria com nome de escritor famoso e pensou que se fechasse os olhos, o mundo talvez acabasse. Ficou assim por uns trinta, quarenta minutos, até que um guarda veio e bateu no seu ombro perguntando se estava tudo bem, ao que ele respondeu: conhece Dóris, seu guarda?


Para Pedro Camacho

segunda-feira, 30 setembro, 2013

Doce de leite espalhado pelo chão. Isso só confirmava a suposição de que algo, ou alguém, no universo, não ia com a sua cara. Conferiu de perto: todo o pote arruinado. Tinha sido presente de sua tia, que mora no interior e fabrica todo tipo de coisas que possa ser possível fabricarem com leite e açúcar. Costumava elogiar, sempre que podia, essa qualidade da tia. Não foi diferente desta vez, só o modo, por carta, que diferia do seu padrão habitual. Desde que chegou à capital tinha suposições, e elas iam pouco a pouco se confirmando, que fora amaldiçoado. Da primeira vez, foi com a sua bagagem. A empresa de transporte havia extraviado todos os seus pertences – ele mesmo tinha conferido visualmente que haviam embarcado junto às pesadas caixas de um senhor que usava trapos no lugar de roupas. Começou durante a viagem. O desconforto ia aumentando conforme se sucediam os quilômetros. Um a um e lá ia também a sua imaginação de que alguma coisa estava errada. Depois foi com a sua instalação. Tinha certeza de ter confirmado a reserva da pensão, mas foi com contrariedade que ouviu a velha brandir a sua bengala de encontro a muito perto do seu rosto, dizendo que ali não era um pardieiro, mas sim uma casa de família, portanto não admitiria um hóspede ao acaso, um desconhecido qualquer, sem que lhe fossem enviadas referências comprovando as qualidades do caráter do agraciado. Conseguiu se instalar perto do trabalho, mas isso foi por pura sorte; coisa que não era comum andar a seu lado. Era um ambiente único e pequeno, com uma cama, um guarda-roupas, duas cadeiras e um tanque para fazer a sua higiene, tudo sobre um tapete que já experimentou melhores dias. Fora terminantemente proibido de providenciar ali a sua comida – evitar atrair ratos e suas pestes foi o motivo apresentado, e tinha de se alimentar nas espeluncas que faziam pratos feitos e comerciais a um preço que não correspondia ao valor nutricional da alimentação e nem a sua higiene no preparo. Era isso ou viver de pequenas rações, essas sim, saboreadas quase sempre a noite, após o expediente, no mais próximo do silêncio que conseguia, dentro do seu cubículo cheirando a mofo e a encontros casuais nada amorosos. Falando em trabalho, outro indício de que algum Deus dos infernos ou alguém lhe imputara alguma maldição, destas que se fazem valer em ritual com animais e sangue, muito sangue. Não tinha certeza de quem desagradara com seu modo de ver as coisas da vida ou da morte, mas sabia, tinha certeza, que nem sempre fora assim que as coisas ocorreram na sua órbita.  Tinha sido escalado, primeiramente, antes mesmo de chegar a capital, para ocupar um cargo de liderança no almoxarifado – pelo menos assim entendeu o anuncio que recortou meticulosamente, com sua tesoura de aparar o bigode e pelos do nariz. Não foi o que constatou na primeira entrevista. De superior virou, num segundo, subalterno de um sujeito que nem ao menos sabia qual era a utilidade ou mesmo o significado das palavras “por favor” e “obrigado”. Isso o contrariou e continuava a perturbar os seus sonhos, seus dias e noites, mas não se deu por vencido e optou pela subserviência momentânea. Um dia, seu valor ia sobressair e por fim ao erro de julgamento a que foi submetido. Agora mais isto: tudo que pegava, escapava por entre os dedos. Por mais forte e determinado que segurasse, não havia maneira de sustentá-lo por muito tempo e invariavelmente, o que quer que fosse que estivesse a segurar, encontrava o seu destino final no chão frio e sujo da onde estivesse ele no momento. Foi assim com o doce, com a tesoura, com a caneta, com a carteira, com as moedas… Seria capaz de continuar para sempre com isto? Para sempre é um tempo em que nunca procurava pensar. Passou as mãos dentro da valise com roupas e uma camisa quase velha surgiu, presente de sua mãe, que ele nunca gostou e só usava nas vezes em que a visitava, e foi usada para limpar o doce derramado. Depois praguejou algo mentalmente, vendo que ficou um borrão, uma trilha, um caminho por onde era possível ver o trajeto por onde tentava se desvencilhar da confusão melada. Isso sempre acontecia com ele, pensou mais e mais outra vez na maldição.  Resolveu então pedir ajuda à senhora que alugava o moquifo que chamava de quarto. Dela conseguiu um trapo imundo e um balde com água pela metade, e uma solução de limpeza que cheirava tal qual a lotação das seis e meia da tarde. Nenhum rodo ou vassoura, perguntou. Só conseguiu tirar dela um rugido primal e a informação que a esta hora a despensa estava trancada e ela não ia subir novamente até o quarto e pegar a maldita chave por conta de um desastrado como ele. Se fizesse assim, jamais dormiria de novo. Ainda achou que pôde ver, de relance, o que se pareceu com um riso de escárnio pela sua desgraça, que fez subir o lábio superior, levando com ele o buço de pelos negros e descontinuados da velha desgraçada. Bruxa lazarenta, confidenciou com seus pensamentos e começou a subir forçosa e penosamente os vinte degraus que conduziam até o seu quarto, com a água do balde lhe encharcando as barras da calça, no piso superior. Quando estava na altura do décimo sétimo, virou rapidamente o rosto para trás, pois julgou ouvir um chamado, possivelmente seu nome em uma voz familiar, e depois disso não se lembra, até o momento em que abriu novamente os olhos, de reconhecer mais nada nem ninguém a sua volta.


sábado, 28 setembro, 2013

Se você ainda está vivo, eu quero que você vá pro meio do inferno, seu corno!

Desligo o telefone. O que aconteceu com aquela antiga e cordial mensagem que dizia pra deixar o nome e o fone depois do sinal? Tudo é muito moderno e pessoal hoje em dia. Depois de pensar nisso, descubro que estou sem moedas pra ligar de novo. Perdi minha carteira com tudo dentro e quando digo tudo dentro é isso mesmo que estou querendo dizer. Abro a porta da cabine de telefone. Aqui fora o dia parece pior ainda do que através da porra do vidro riscado e pichado com toda espécie de sacanagens. Bairro de merda – penso enquanto coloco um Marlboro na boca. Não encontro o isqueiro. Isso sim é um grande problema. Sei mais ou menos como sair desta porcaria de lugar, mas meus joelhos não parecem querer ajudar e meus pés doem uma dor que só me lembro de sentir quando fui ajudar meu pai com o piano – sim, tínhamos um piano, mas o velho entrou uma noite, quando todos, menos eu, dormiam e levou ele embora. Também levou a vida da minha mãe, mas isso é outra história. Eu e minha maldita insônia. Então, acontece que na frente de casa tinha uma escadinha com dois ou três degraus. Eu tropecei num deles e a merda do piano esmagou os meus dedos do pé direito. Desde então eu não confio nada neles. Caminho mancando até a esquina à direita. Um sujeito enorme, com uma quantidade inacreditável de pelos no corpo esta ali, encostado no muro de tijolos, fumando tranquilamente seu cigarro.  Ei Chubaca, tem fogo? Tento parecer o mais cordial possível. O sujeito me olha de cima a baixo, se concentra nos meus pés e diz: que porra aconteceu com o teu pé, apontando pro direito. É uma longa história, digo, e repito o lance do fogo. O grandão saca um isqueiro, desses antigos que parecem um lança-chamas e funcionam com querosene, que, além de acender meu cigarro, chamusca ele todo de preto.  Que merda você pensa que tá fazendo, digo enquanto arremesso o cigarro arruinado e pegando fogo pro outro lado da parede de tijolos. Ele fica ali, me olhando com se eu falasse alguma língua estranha ou sei lá o que ele tava pensando. Você não é daqui, não é? Puxa! Brilhante! Então, como faço pra desaparecer dessa merda de lugar? Como assim? Assim mesmo, sumir no ar, desmaterializar ou qualquer coisa desse tipo. Cara, você deve tá muito na onda. O que ele tava dizendo? Olha, você tem umas moedas? As minhas acabaram. E se eu tiver?  – disse Chubaca. Bom, você poderia enfiar todas elas no seu cu peludo, mas só pensei nisso e falei: que tal me arranjar umas cinco? Fico te devendo essa. Me arrastei até a cabine e abri a porta e então percebi que tinha uma espécie de meleca grudada no trinco e que que agora se espalhava pela minha mão. Maldição! Um cara vira dois segundos pro lado e um tarado esguicha porra em toda a maçaneta. Mas que espécie de lugar é esse? Mundo de merda. Limpo o melhor que posso a mão na calça do terno – mas por que estou de terno? Enfio as moedas na aberturinha e escuto o som delas caindo no abismo dentro do aparelho de telefone para nunca mais voltarem. De volta só um zumbido. Mas o que foi isso? Cadê a linha? Dou uns três murros no aparelho, mas percebo que ele é duro na queda. Que provavelmente caras bem mais fortes que eu não tiveram o menor sucesso com esse filho da puta. Não é possível, falo levantando bem o queixo na direção de Chubaca. Ele sempre faz isso. Depois de cada ligação, engole as moedas, disse o peludo. É um filho da puta. É o que eu sempre digo. E agora? O que eu vou fazer. Bom, você ainda me deve cinquenta cents. Você tá falando sério? Você mesmo viu que o telefone me sacaneou. Eu não tenho nada com isso. Negócio é negócio. Por um instante vi que aquele mamute poderia sim matar por cinquenta cents. Olhe, vamos ser razoáveis, tá certo, eu devo os cinquenta cents, mas quero mais crédito. Você quem manda. Certo: duzentas pratas. Aí eu vou precisar de garantias.  Tá de brincadeira? Que garantias? Que você vai me pagar. Mas eu pago, olhe, eu tenho dinheiro. Então não precisa do meu. Chubaca virou e saiu andando na direção contrária a que eu tinha imaginado. Ponto pra ele. Ei ei ei, ok. O que pode ser? Os dois grande olhos bovinos me encaram, de novo de cima para baixo. Esses sapatos? São caros? Tá brincando? Esses sapatos são italianos, sem chance. E o relógio? Olho pro relógio e percebo que tá quebrado. Tá quebrado! O filha da puta do relógio tá quebrado! Você sabe quanto me custou esse relógio? E agora tá arruinado! Então você não tem nada. Não não, peraí. O relógio mais o cinto. É italiano também. Valem uns quinhentos mangos. O relógio tá quebrado. Tá, mas só eu e você sabemos disso. Eu devo ter emagrecido uns cinco quilos nesse pesadelo. Percebi quando a minha calça quase parou nos tornozelos. Lá se foi meu rolex de titânio e meu cinto de couro italiano. Te dou cinquenta por tudo. Olhei pra pata do Chubaca esticada com duas notas de vinte. Como assim? Eu falei duzentos, e aí só tem quarenta? Tempos difíceis. Olha só: vai à merda. Devolve meu cinto e meu relógio. Sem chance. Trinta. Vi que era melhor pegar antes que fosse vinte e depois dez. você é um belo espécime, não é mesmo, falei acentuando as palavras pra dar o tom do nojo e do desprezo que eu tava sentindo por ele naquele momento, mas duvido que ele tenha sacado qualquer coisa. Sou um sobrevivente. Certo, certo… onde posso trocar essa merreca por moedas. Se quiser eu troco. Como é que é? Se quiser eu troco. Quer dizer que este tempo todo você tava recheado de moedas e não me falou porra nenhuma? Você perguntou? Dei a grana e saí sem olhar pra trás. Quando cheguei no telefone, fiz uma conta rápida e descobri que tinha sido roubado em vinte mangos. Qual era o problema daquele cara? Escuta aqui: você me deu só dez dos trinta paus. É o ágio, e além do mais, por que você quer trinta paus em moedas? Vai ligar pra Tóquio. Certo, certo, aquele filho da puta ia ter o dele, mais cedo ou mais tarde, mas ia sim, prometi pra mim mesmo.  Coloquei moedas suficientes pra uma ligação de cinco minutos e ouvi o telefone chamando, atendendo e…  a voz dela e a mensagem na secretária, a mesma mensagem fazendo alusão ao inferno ou o que quer que seja com chifres que estivesse passando na cabeça daquela cadela. Atende esta merda, atende agora, sua puta desgraçada! Atende a porra do telefone senão eu juro que vou até aí e enfio essa buceta no seu rabo! Enquanto perdia o controle de tudo que me cercava e de mim mesmo, batia o fone no aparelho até que consegui, e não faço a mínima ideia de como, separar um do outro. Nisso, Chubaca entrou com tudo pela porta estreita da cabine e me pegou pelo pescoço. Seu filho da puta! Quer acabar com o meu negócio? Na hora o ar me foi retirado dos dois pulmões ao mesmo tempo e não entendi merda nenhuma e nem em que língua ele tava falando. Depois, na calçada, o ar foi voltando devagar. Mas o que foi isso? Você quase me arrancou a cabeça, seu retardado. Você destruiu meu negócio e vai ter de pagar por isso. Mas do que é que você está falando, homem? Da onde estava, podia ver os pelos saindo das orelhas e nariz daquele animal enraivecido. O telefone. Você acabou com ele. O que tem a ver o telefone com a minha cabeça? Agora eles vão trocar a porra do aparelho. Saquei tudo. Filha da puta. E eu caí como um trouxa. Você é o pior dos vermes, Chubaca. Para de me chamar assim ou eu arranco tuas pernas. Mesmo aleijado, você vai continuar sendo o pior entre eles. Fui me apoiar pra levantar e segurei uma coisa redonda, cilíndrica na verdade, que estava entre a calçada e a rua, um cano! Nisso, o que aconteceu foi muito rápido, mas puder ver um pedaço considerável dos pelos da cabeça do grandão serem arremessados a uns cinco metros da onde caiu o resto dele. Pude também sentir, depois disso, uma dor lancinante no pulso direito. Provavelmente estava quebrado. Merda! Já não chega o pé, agora o pulso. Escuto um barulhinho, um tipo de marimba de madeira ou alguma coisa do gênero, vindo do corpo desfalecido do Chubaca e, sinceramente, espero que ele tenha mesmo ido pra puta que o pariu. Olha só! Um celular novinho em folha. Aperto os botões e a voz diz: disque taxi. Certo, você consegue rastrear onde estou pela ligação? Sim, senhor. Então venha rápido. Desligo o aparelho, vou até o que restou do Chubaca e pego o meu relógio quebrado e meu cinto, o cano e mais uns oitocentos paus que o babaca tinha com ele. Agora aquela vadia vai ver com quem se meteu.


para Neil Young… somos o que não parecemos ser

domingo, 18 agosto, 2013

E o velho homem ginga em cima do palco, empunhando a velha companheira, aquela que sempre esteve ao seu lado. O velho homem canta sobre dias bons e ruins, canta o amor que ficou na memória, onde ficam os amores que não tiveram fim. Dentro do velho homem permanece o que ele sempre foi, a criança velha, jovem velho. Era de se esperar que ele ficasse a vontade com seu corpo velho, mas não. Lentamente ele se tornou a criança e toda sua vitalidade e curiosidade, o jovem e suas inquietações e desilusões. Não precisa mais do velho. Passou a vida tentando esquecer que era o velho quem existia o tempo todo, bem lá no fundo, onde a maioria das pessoas não percebem, não podem ver.  


A cidade do bluesman desaparecido

quinta-feira, 15 agosto, 2013

O ar da mercearia se enchia de poeira fina, daquela que entra até os ossos, a cada carro que passava, de hora em hora, na estrada. Era o máximo que eu podia esperar da longa tarde neste lugar perto do inferno.  O zumbido do refrigerador de carne, que antes dava uma agonia que rastejava por horas a fio, agora era só mais uma das coisas do lugar. Moscas, várias, de todos os tipos, voavam e pousavam em tudo, de dentro dos olhos até onde mais estivesse descoberto. Foi na tentativa de acabar com algumas delas que derrubei um quadro velho. Quando caiu se desprendeu da moldura e outro quadro saiu lá de dentro. Tinha o rosto de um homem negro e desfigurado pelo tempo e gordura do lugar. Também tinha data e local escritos: era um cartaz de show. Não dava mais pra ler o nome, nem do homem e nem do lugar da apresentação. Fiquei ali olhando um bom tempo, tentando juntar mentalmente letras que fizessem sentido nos espaços. Não consegui nada. Neste intervalo, vendi dois queijos coalho e um pedaço de fumo. Odeio quem masca fumo. Dá um trabalho desgraçado tirar as manchas de cuspe do chão. Decidi montar o quadro novamente, só com o cartaz, ao invés daquele pássaro estúpido, e coloquei no lugar de antes. Depois de umas semanas, meu patrão me chamou e perguntou o que tinha acontecido com o pássaro. Voou, falei dando as costas. Nisso ele me disse que fazia tempo que não via este cartaz. Que ainda podia escutar o barulho das pessoas e suas vozes no lugar, sentir o ar pesado pela fumaça de charuto. Sentir o cheiro do uísque de alambique e a garganta rasgando em sua jornada de encontro ao estômago. Disse que era preciso afrouxar a gravata depois da primeira dose, se ainda quisesse ficar em pé e respirando. Me apoiei no balcão bem na sua frente e fiquei ouvindo enquanto ele parecia cantar enquanto contava os fatos que tinha visto. Tem uma memória bem viva este desgraçado. Em sua estória eu podia sentir o tecido enquanto esbarrava no vestido das mulheres rumo ao balcão. Podia sentir o peso do chapéu enquanto colocava a aba no lugar certo. Mas como era o nome do negro com a guitarra no cartaz, perguntei. Ele me olhou sério, fez um grande silêncio e me olhando nos olhos com seus grandes olhos negros de negro disse que não se lembrava. Disse que tinha algo a ver com o cartaz do pássaro que estava na frente e que ele queria ver de volta no lugar.