Ron Carter ou “existe um lugar bem melhor para se estar entre o céu e a terra”


Ron Carter Trio

Eu que achava que sabia o que era jazz… Não sabia mesmo. Sempre ouvi com muito interesse as grandes lendas do jazz e me deleitava com solos do Coltrane, Miles & Cia. Ouvir é uma coisa, ver, ouvir bem de perto, é outra bem diferente. Ron Carter tocou com todos os melhores músicos de jazz que eu conheço e desconheço. Ele sabe muito bem o que significa pegar um contrabaixo acústico e encarar o turbilhão de melodias & harmonias, sempre com o pulso forte e constante, sem titubear nem um segundo. Ron Carter é o cara, a lenda e tudo o mais que falam dele. É maravilhoso, desde a hora que aquele senhor, elegantemente vestido (aliás, todos os músicos impecáveis em seus ternos pretos), com uma aura magnífica, entra no palco, sóbria e tranquilamente.

Nem uma palavra se ouve – nem dos músicos nem da platéia – só os aplausos tomam conta do auditório repleto, enquanto o trio se curva em  sinal de reverência à acolhida, bem a nossa frente. Só isso, a presença dos três músicos, já impressiona, e muito.

Nem uma palavra e Ron pega seu contrabaixo e os outros músicos tomam seus lugares.

A primeira canção não sai com uma boa equalização do trio e o pianista e Ron têm dificuldades em tirar o melhor dos seus instrumentos. Nada que comprometa, mas o som meio estridente do piano e o baixo embolado incomodam visivelmente os músicos e quem está grudado em cada movimento do trio.

Na segunda canção, com a intervenção discretíssima do pianista junto ao técnico de som, o som aconteceu em sua plenitude e daí pra frente não consegui mais ficar de olhos abertos. Notei, entre uma olhadela e outra, só para ter certeza de que eu estava mesmo vivo, que nem o Ron Carter conseguiu manter os olhos abertos.

Impressionante é  muito pouco para definir o que foi a apresentação do trio, e, em especial, claro, de Ron. O cara que estava sentado ao nosso lado, que havia visto duas apresentações de Ron Carter, disse: Não sei se o contrabaixo foi feito para o Ron ou se Ron foi feito para o instrumento. Melissa completou e disse que Ron parecia funcionar como um prolongamento do instrumento. Eu não sei o que acho disso, mas sei que a música que Ron e o trio executam é divina. Você consegue perceber todas as nuances da transição para cada nota (ou acorde), a intenção em que ela é tocada e o por que é tocada naquele momento.

Eu já vi grandes músicos tocarem, mas o que eu vi ontem com Ron Carter Trio é indefinível. Fiquei em transe, sem conseguir entender ou racionalizar ou verbalizar o que eu tinha presenciado. A única certeza que tenho é que nunca escutei uma música parecida com aquela, com a intensidade, com a capacidade de emocionar profundamente uma audiência inteira ao mesmo tempo, de deixar todos em silêncio, com os olhos e alma brilhando de uma alegria plena. Sim, alegria é uma boa definição para o que se estava ouvindo, pois você era tomado de alegria e felicidade, conforme  o trio desfiava os intricados acordes e arranjos das canções. Nunca experimentei nada parecido com a música ao vivo, até então.

Pelo meio do show, Ron pegou o microfone e agradeceu a presença de todos com uma voz grave, num tom baixo, com um timbre tão impressionante que eu entendi porque ele toca contrabaixo e aquele papo do instrumento ser sua extensão ou ter sido feito para ele. Ele é sim o contrabaixo falando, pois ele toca como fala, calmo e incisivo, preciso e melódico… Tão impressionante quanto o som do seu instrumento. Ron fez piada e anunciou My Funny Valentine. O pianista foi uma atração à parte. Eu, que mantinha meus olhos fechados, saboreando cada frase, tive de abri-los pra ter certeza que estava mesmo ouvindo aquilo tudo que ela tocava. Foi impressionante. Eu ouço jazz e sei que pianistas são virtuoses, mas o que eu ouvi nesta noite foi além do que eu imaginava ouvir. Uma série de acordes com todos os possíveis diminutos e sétimas e o que mais você nem podia identificar foram despejados com uma competência e classe impressionantes. Não sabia que isso era possível, que eu estava vendo um senhor de mais de setenta anos de idade tocar daquela maneira, com aquela destreza e emoção. Foi sublime e chorei mesmo com o som perfeito que vinha daquele piano. Foi lindo, emocionante, e todos os adjetivos que se possa imaginar para uma coisa tão maravilhosa como foi o solo de piano que o senhor pianista, vestido elegantemente de preto, tirou do piano. Foi aplaudido quase que em pé por toda a audiência. O mundo se tornou um lugar muito bom para existir nesse exato momento e tudo que é realmente importante fez sentido.

Depois do solo fantástico do pianista, veio o complemento com o solo da guitarra. Eu achava que o piano já era o bastante, que o guitarrista não tinha a mínima possibilidade ou chance de nos emocionar mais ainda. Me enganei. Ele conseguiu e foi a coisa mais maravilhosa, ou tão maravilhosa quanto o piano, que eu já ouvi. Cada nota fazia sentido, tocada e resolvida com um grau de simplicidade absurda – se é que se pode chamar aquele solo de simples -, com um grau de competência técnica que não é deste mundo, com um sorriso imenso de felicidade do caçula do trio. Sinceramente? Eu nunca ouvi nada parecido com esses solos. Eu estava ali, olhando, ouvindo, rindo de felicidade e juro que quando lembro me parece um sonho, desses bons, que a gente tem e gosta de ficar relembrando, pra poder reviver a intensidade de cada momento.

Ron Carter também solou, mas eu já estava num estado de graça – e vi que todos os presentes também estavam -, que só conseguia rir e aplaudir e rezar pra que eles não resolvessem acabar a canção ou que Israel não fizesse outra merda capaz de explodir o planeta. Eu precisava ouvir mais e mais daquilo, e eles tocaram muitas outras coisas em que o sentimento de alegria se repetia e se completava com uma profunda satisfação de estar vivo e presenciando àquela música sublime.

Fico extremamente grato ao trio, por tornarem isso, essa alegria, essa felicidade de estar ali, vendo a música tomar forma e sentido, possível.

Ron e o trio encerraram a apresentação sob uma cortina de palmas que não parecia ter fim. Era a necessidade de todos devolverem o carinho, a elegância, a simplicidade, a felicidade e a alegria de estarem ali presentes, ao trio.

O bis foi um show à  parte, com uma transição de andamento “walking bass” tranquilo e estiloso para um “Bebop” insano, onde se via um senhor tocando contrabaixo com uma capacidade técnica para transformar qualquer desafio físico em algo sublime e sofisticado, com a marca da sua elegância e sinceridade com a música que brota em cada poro daquele homem.

Sublime é pouco, mas as palavras nunca vão conseguir definir o que presenciamos nesta quarta-feira de frio, em São Paulo, onde parecíamos ter saído de um daqueles clubes enfumaçados que moram no nosso imaginário de ouvintes do jazz, pra um mundo cheio de possibilidades e novidades.

Sr. Ron Carter, muito obrigado por ter me apresentado ao jazz. Tudo fez sentido agora.

Musicos:

Piano : Mulgrew Miller

Guitarra : Russell Malone

Contrabaixo : Ron Carter

4 Responses to Ron Carter ou “existe um lugar bem melhor para se estar entre o céu e a terra”

  1. Ivan disse:

    lindo texto. quase faz a gente sentir o que a música fez vc sentir. arrepiante.

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