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Um grito estridente. Um grito amargo. Um grito calado. Não tenho certeza se ouvi mesmo ou era só alguma coisa explodindo dentro da minha cabeça. Faz calor nesta merda de cidade. Eu queria ir embora, mas não me deram a passagem de volta, muito menos dinheiro suficiente. Sábios, caso contrário já estaria do outro lado do planeta, bebendo alguma coisa gelada com rodelas de limão. A droga que me venderam ontem era uma merda. Empedrou meu rosto. O lado esquerdo paralisado. Tenho uma reunião pra definir bobagens em meia hora e não tem nada que tire o sorriso idiota da metade da minha cara. Meu terno está amassado, eu estou amassado. Ligo pra recepção do hotel e pergunto se engomaram direito a minha alma. O cara não entende, então peço uma vodka com suco de laranja, mas quero a garrafa da vodka. Ele me explica que foi instruído pra não me deixar sozinho com nada mais que um copo por vez. Mando ele tomar no cu e me trazer a porra da garrafa. Veio o copo. Pelo menos está gelada. Não dou gorjeta. Apenas resmungo alguma coisa e bato a porta. O calor aumenta. Aumento o ar. Minha garganta trava, meu lado esquerdo sorri, meu cérebro apaga por uns dois segundos. Então estou descendo. A água é fria, gostosa, azul, quieta e calma. Quero ficar mais tempo nessa queda, mas o telefone toca. Estou com rodas de suor embaixo dos braços. Minha testa escorre, meus dedos e pernas tremem. Tenho alucinações com meu chefe de cinta liga e sapatos de salto alto. Quero comer o cu dele, mas ele dá a volta na mesa e fica abanando o rabo. Vão mandar um motorista me apanhar. Ótimo. Sou bom com motoristas. Isso quer dizer que não vamos direto pra porra da reunião. Primeiro vamos passar no gueto e pegar alguma coisa que quebre o cimento da minha cara. Eu preciso, o mundo precisa. As pessoas não são pessoas boas sem drogas. Sóbrias elas são mesquinhas e chatas. Sóbrias elas acham que Deus é um cara perigoso. Eu acho que ele não existe. Os livros são os culpados, sempre falo isso. Na minha palestra falo isso. Quando estou trepando falo isso. Quando estou cagando uso as páginas de alguns autores que não prestam pra nada, a não ser pra isso. Tem um barulho, um zumbido. Destruí a televisão mas o barulho ainda continua. Agora foi a vez do frigobar vazio. Quem quer um frigobar vazio no quarto? Nem os evangélicos estupradores de almas. Falei isso numa palestra. Metade, mais da metade das pessoas saíram. Achei ótimo. Os que continuaram poderiam ser potenciais pagadores de bebidas, sem contar as mulheres, que poderiam entrar com a parte divertida da vida. O zumbido só pode ser dentro da minha cabeça. Tento desencanar. Merda, lembrei que hoje vai passar uma entrevista que eu quero ver, ou será amanhã? Ligo pedindo uma TV nova. O cara pergunta qual o problema com a minha. Falei que ela saiu com a mãe dele e voltou com um sério problema. Ele disse que vai ver o que pode fazer. Olha só isso: vai ver o que pode fazer. Que tipo de hotel é esse? Sem mulheres, sem TV, com a geladeira vazia e um zumbido infernal. O calor, é isso: estou no inferno, só pode ser. Aumento mais ainda o ar. Acredito no inferno. Passo a maior parte do tempo entrando e saindo dele. Tenho cadeira vip e o diabo é chileno e me paga uns pisco sour. Abro e fecho a janela. Cidade maldita, só poluição, carros e mais poluição. O que aconteceu com o verde? Digo, com aquelas coisas verdes, com o vento, com… batem na porta. Uma TV nova. Não abro. Peço pra deixarem ali que já pego. Tenho de tomar um banho. Tiro a roupa e entro de cuecas no chuveiro. Água, sempre ela vem me salvar. Tenho boas lembranças da água – meu pai morreu afogado. O telefone toca. Escorrego na banheira e bato a cabeça na privada. O zumbido parou, outra coisa pior tomou o lugar dele. É um lugar  escuro o passado. Estou com uma roupa de cowboy e meu pai me puxa pela mão, com força, me arrasta por um parque de diversão. Sou o único que parece não estar se divertindo. Meu pai sim, ele se diverte espancando a mim e a minha mãe. Ela foi mais esperta e sumiu numa noite lá atrás. Eu não sabia que o mundo era bem melhor que a minha casa, senão tinha ido antes. Encharco umas duas toalhas com o sangue da minha cabeça. Parece que vou desmaiar. Preciso de outra bebida. Recepção: pois não? Eu tenho de rir desse cara. Então pergunto se ele fala isso pra todas. Ele não entende de novo. Deve ser judeu esse filho da puta. É sim, ele é judeu, não, não pode ser. Se fosse judeu ele seria o dono do hotel. Isso me aterroriza: será que me colocaram num hotel judeu? Isso explica o zumbido. Começo a procurar câmeras escondidas. O telefone de novo. Não atendo, pode estar grampeado. Procuro a minha roupa. Acho. Está molhada num canto do banheiro.  Estou arruinado. Meu único terno, arruinado. Procuro alguma outra coisa. Acho uma camisa com flores, tipo turista e uma calça esporte, bege. Serve. Coloco um boné para esconder o talho na minha cabeça e óculos escuros pra disfarçar a paralisia do meu rosto. Olho no espelho e gosto do que vejo: um homem velho, parecendo estar afim de confusão. Chuto alguma coisa que se prendeu no sapato, chuto, sem querer, a TV na porta. Mais um tombo. Estou acostumado a levantar, mas esse dia começou pior que os outros. Bem pior.

6 Responses to 2 segundos

  1. Carlos disse:

    Puta inferno, as chamas de fogo chegam perto dos pés. E ainda sonhar com o chefe de cinta liga. Puta inferno, o pesadelo aponta bem mais rápido dentro da cabeça.

  2. Linguinha disse:

    Então seu barrigudo, vocês vão tocar na páscoa. Vê se enfia o espeto no coelho!
    Abraço brother…

  3. Flávio Vajman disse:

    Vamos sim, Rubão! Eu confirmei contigo há quase um mês atrás esse show da Páscoa. Não nos deixe na mão, hein? Abraço

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